Monday, June 25, 2007

Dr. Francisco Salgado

QUADRAS SANJOANINAS

Fiz um barco de papel
Para dar a volta ao mundo
Quis andar, meti-me nele
Acabei por ir ao fundo


Esse teu vestido aos folhos
Que trazias quinta-feira
Faz-me lembrar os teus olhos
Quando ris na brincadeira

Namorei uma só vez
E fiquei apaixonado
Comigo já vais em três
Vê lá bem se tens cuidado

Teus olhos, meu bem, teus olhos
Quando brilham de alegria
Parecem cravos aos molhos
Em noite de romaria

De há uns tempos para cá
És a silva dos caminhos
A amora doce está lá
O pior são os espinhos

Fizeste jura bem sei
De não quereres nada comigo
Mas os beijos que roubei
Hão-de ser o teu castigo

Vi-te no baile enlevada
Num torvelinho de dança
Ver-te assim entusiasmada
Dá-me gostos de vingança

A moça namoradeira
É tal e qual um melão
Maduro que bem que cheira
Só lhe falta o coração

A moça pelo S. João
Digo-te já não duvides
Faz lembrar um bom melão
Carregado de pevides


Fora eu o teu marido
E afinava da desgraça
Desse teu ar atrevido
Cumprimentando quem passa

Trago dentro do meu peito
Roidinho de ciúme
O meu coração desfeito
A chorar sem um queixume

Quis andar de bem contigo
Afinal tu não quiseste
Não sei se foi um castigo
Mas sei bem o que perdeste

A carta da despedida
Rasguei-a, deitei-a ao lume
Queres saber, depois de ardida
Ainda tinha o teu perfume

Pus-me a passar noite e dia
À porta do teu jardim
Quis saber se lá havia
Quem se lembrasse de mim

Antes ver-te na soleira
Sentada a dobar o linho
Do que ver-te na ribeira
Com a roupa em desalinho

Vou armar com alecrim
Um ramo para o teu noivado
Vale mais fazer assim
Do que andar amofinado

Por me ver abandonado
Como um craveiro sem sol
Vou cantar desesperado
Como canta o rouxinol


Francisco Salgado

VÁRIOS I

Sacrário

Um perfume a madressilva
Pela porta entreaberta
Um poema inacabado
No fundo do armário
A palavra desperta
A palavra deserta
O tempo e o lugar
A ferida descoberta
No vão de um relicário


Mater admirabilis

Não recordo uma carícia um afago
Apenas o intenso o profundo
Calor dos teus olhos que ainda trago
E quando te perdi
Perdi o mundo

´VÁRIOS II

Maresia

um perfume verde a baloiçar
barcos destruídos
o teu corpo percorrido
na brisa que meus olhos nau
fragam abandono com sabor de algas e coral

profundo nos teus olhos
de sereia
meu amor
este gosto do sal
que vem no vento

Baixa-mar

meu corcel de espuma
destroçado
onda
torrente
sôfregos tentáculos
em que me prendo
e abrigo
e aceito
o teu corpo adivinhado
a fúria desejada
o lodo
e a maresia dum
beijo
e dum soluço


Pôr de Sol

quero um pássaro de sol
a brincar
no teu regaço
e a rubra fantasia
com perfumes de cravo e de alfazema

as loucas pinceladas
com que traço
o apagar do dia
num poema

Francisco Salgado

VÁRIOS III

Passos na Areia

o pedaço
de sargaço
que arrasto
em cada passo
é o espelho
do que faço
e contrafaço
vai-se perdendo o espaço
seco e velho
e muito gasto



Natal

penumbra de olhos plasmados
na soturna agonia
de brinquedos impossíveis
a refulgir do sonho
indiferentes
às mãos nuas impotentes
vasculhando desesperos
nos bolsos esburacados

criança
salpicada de natal



Somos cinco irmãos

desiguais no tamanho
em tudo bem diferentes
cada um com o seu jeito e o seu mister
só a palma lhes traz a união
os cinco são como os dedos de uma mão
abertos com ternura a toda a gente
cerrados um só punho e um arreganho
difícil de vencer


Francisco Salgado

VÁRIOS IV




Ao meu grande amigo,
O meu mano mais velho,
Dimas Maio, como testemunho
De uma amizade imperecível
.



Mar da Póvoa

Quando vejo das vidraças
Este mar mesmo de fronte
Tomo o céu por horizonte
Tomo as nuvens por barcaças
E navego o dia inteiro
Ao sabor do desatino
Como qualquer marinheiro
Sem ter rumo nem destino
Mar da Póvoa, mar da Póvoa
Onde perco o meu olhar
Não quero ser timoneiro
Nem navegar num veleiro
Que anda perdido no mar
Quero ser como a gaivota
Sobre as ondas baloiçar
E se o peixe não se esgota
Ficar na praia a esperar.
Mar da Póvoa, mar da Póvoa
Que tenho na minha frente
Só quero ser marinheiro
Para chegar ao sol poente!




AVM/19/06/07

Francisco Salgado


DESMORONAMENTO

mãe venho dos fundos dos tempos
das cavernas trago em mim a sede
a miséria a fome e o desespero
escorre-me viscoso das teias poeirentas
um grito magoado de tortura
inquisições calúnias cadafalsos
a peste e as vinganças a destruição e a morte
mãe sou um homem enforcado no gáudio popular
archote aceso por ignotas crenças
carrasco e réu tirano e maltrapilho
proscrito para as galeras sem culpa nem ofensas
condenado inocente por apenas ter nascido

mãe sufoco no garrote que me abafa
a revolta feroz dos oprimidos
arrasto no meu ventre a escravatura
com marcas de grilhetas e chicote
submisso ao capricho dos tiranos
que riem com desdém e crueldade
e matam por matar sem piedade

mãe venho dos fundos dos tempos
das naus dos meus senhores
a náusea e a amargura
fizeram destas mãos
o sangue com que choro e me arrepelo
fizeram desta dor
o pão que me alimenta
fizeram da impotência
o vento que me despe e despenteia

mãe eu sou escravo sou servo da gleba
sou artesão soldado sou mouro sou judeu
construo catedrais e durmo nas sarjetas
os lábios carcomidos gretados e famintos
disputando aos cães os ossos do caminho

mãe venho do fundo dos tempos
fibra a fibra me desfaço furioso
na terra ressequida
onde a cada passo tropeço enraivecido
pela minha cobardia
mãe mas ainda creio na lonjura dos poentes
no canto dos pastores na volta dos rebanhos
liturgia do tempo que teima em não morrer

mãe…
FranciscoSalgado



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A síntese da minha leitura :

Poesia é metáfora


DESMORONAMENTO é a metáfora do mundo do homem actual.

É conjugada em metáforas do ego, do sentir do poeta, alma angustiada
que grita , em silêncio , pela mãe , origem do ser que teme a ruina total,
mas crê ainda no regresso aos tempos primitivos de sua memória
dimasmaio

Saturday, September 23, 2006

SABER LER E ESCREVER A LÍNGUA PORTUGUESA

Reedição do texto, publicado em "O Comércio da Póvoa", n.º 25 de 30/06/05
DENOTAÇÃO / CONOTAÇÃO

Referi, no último texto sob este titulo, que trataria, na primeira oportunidade, do elemento: “sentido conotativo das palavras”. Disse eu então, “que pode ser confuso o emprego de determinado termo em contexto que leve a induzir o leitor a uma interpretação que não se pretendia”. Tentarei esclarecer o fundamento desta minha proposta, começando por definir a dicotomia denotação/conotação, sentido conotativo por oposição a sentido denotativo do signo linguístico.

Partindo do princípio de que não estou a ter a ousadia de escrever para hipotéticos leitores versados em estudos linguísticos, encaminhar-me-ei pela vereda(1) mais curta, de acesso imediato a uma informação elementar, mas pretendendo que seja suficientemente esclarecedora do objectivo a que me proponho.

Denotação - do latim “denotase” (indicar por meio dum sinal, designar), provém do nosso denotar , isto é, revelar ou significar por meio de notas ou sinais; indicar. Dizemos, por exemplo, que a atitude de Sócrates denota coragem e inspira confiança para debelar a crise económica em que o país se afunda. A denotação duma palavra é aquilo que ela expressa na sua aplicação vulgar, mais corrente, no seu stricto sensu

Conotação – “Parte do sentido de uma palavra que não corresponde à significação propriamente dita . É uma espécie de representação mental, subjectiva , simultânea ao significado objectivo”.
Facilitará ao leitor a melhor compreensão para os exemplos que exporei a seguir, se lhe adiantar que “os cientistas e os filósofos tendem mais a usar as palavras no sentido denotativo; os escritores literários confiam na conotação para obter efeitos mais belos e exprimir significados mais profundos”

Fora da arte literária há, porém, outras conotações, algumas de sentido negativo, pejorativo, de insinuação grosseira, insultuosa, obscena.
Vejamos os exemplos e o leitor verificará se tenho sido suficientemente explícito para os entender, no alcance do meu objectivo:
O vocábulo “pão” (significante) significa (denota) substância alimentícia feita de farinha; quando digo, por exemplo, comi pão com manteiga ao pequeno almoço. Mas, se declaro que F... comeu o pão que o diabo amassou, o significante é o mesmo mas o significado altera-se, ou melhor, alarga-se (conota-se) como sustento, trabalho, vida. Tem o mesmo sentido na oração: “... o pão nosso de cada dia nos dai hoje Senhor...”

A palavra “mulher”, denota um ser humano, feminino de homem, mas dependendo do contexto ou acentuada entoação oral, pode ter uma forte carga conotativa, de sentido pejorativo ou insultuoso: mulher da vida; rameira; fraca reputação.

Vejamos o termo “rapaz”: aplica-se, normalmente, com o significado (denotação) de jovem, mas também pode ser conotado como leviano; indivíduo sem palavra ; canalha... dependendo do contexto em que é inserido.

***
Para rematar meus esclarecimentos, socorro-me do “Dicionário de Termos Literários” 2.ª edição de Massaud Moisés onde diz que a conotação vemo-la na prosa e na poesia, mas esta é, por natureza, conotativa. “Enquanto num texto poético cada palavra pode assumir mais de um sentido, num texto "prosístico" o vocábulo tende para a denotação e só adquire matiz conotativo quando se leva em conta o conjunto da obra onde se inscreve”

(1) “vereda” = atalho – aqui de uso literário, ou conotação


Atentemos agora neste soneto, onde é evidente a conotação:


SUAS MÃOS
(de Gonçalves Crespo)


As mãos dessa franzina criatura
São feitas de camélias cetinosas;
Ressumbra na suavíssima textura
O azul das ténues veias caprichosas.

Levemente compridas, graciosas,
Escurecem das teclas a brancura,
E desprezam as lindas preguiçosas
Os finos arabescos da costura.

Os dedos são de jaspe modelado;
E as unhas ... só podiam as paletas
De um chinês imitar-lhes o rosado.

Se alguém as beija em curvas etiquetas
Sente um aroma doce delicado
Como o aroma subtil das violetas.


Aqui, o signo linguístico complexo, as “Suas Mãos” como significante, não representa o significado simples da extremidade dos membros superiores; observa-se, sim, uma criação literária, imaginação do poeta, que fantasia uma auréola de encantos para as “Suas Mãos, - as mãos dela, da sua amada. É evidente a conotação”

Monday, September 18, 2006

REIIVAL - A POETISA


Da minha amiga Virgínia com o pseudónimo “Reival”, que, como eu, foi assídua colaboradora do jornal “ O Comércio da Póvoa”, apraz-me reeditar sua pequena poesia que me empolgou à"leitura", publicada no n.º 43 de 30/10/03

Com o título: HAVERÁ?!
Subtítulo : Tu, na marcha branca!

Haverá coisa mais bela de ver
Que nem o céu com mais cores
O mar com as suas ondas
Em ebulição...
O sol com seus ardores
A pálida luz da Lua
Onde uma estrela flutua
Em cintilação...
Um beiral com as suas pombas
Enamoradas...A leveza do despertar
Das madrugadas ...
Ou o campo florido de papoilas
Por entre os trigais
Em ondas de bonança ...
Não jamais, jamais,
Haverá coisa mais bela de ver
Do que o olhar de criança !

A minha leitura :

Comecemos pelo fim, pela metáfora chave de todo o texto que é um hino à pureza personificada nesse ser frágil que é a criança. Aqui, o puro é o belo e o significante, o vocábulo criança, induz o significado beleza que se exprime no olhar.
O texto é, globalmente, uma hipérbole e há o recurso predominante a sensações visuais , comparações em cadeia com elementos do céu, do mar e da terra, em que o termo olhar de criança determina o grau de superioridade. Ver o olhar de criança traduz a sensação de beleza superior às cores do céu, às ondas do mar , aos ardores do Sol, à luz da Lua, ao cintilar de uma estrela, às pombas enamoradas do beiral, à leveza do despertar das madrugadas, ao campo florido de papoilas por entre os trigais de bonança.
Como se vê, a poeta recorre a elementos do céu, do mar e da terra para, hiperbolicamente, exclamar: Não jamais, jamais haverá coisa mais bela de ver do que o olhar de uma criança !
Finalmente, quero dizer que a pequena poesia é repassada de uma emotividade intrínseca a que as rimas, postas com arte, prestam o seu contributo para a sensibilidade do leitor.
Q U A N T O S ? !

Quantos olhos magoados sem
/esp’rança
Duma réstia de luz
Caminham nesta vida, sem bonança,
Presos à sua Cruz?!
Almas dilaceradas sem que alguém
Pressinta a sua dor
Sem que, por caridade, então
/ninguém,
Seja cireneu por um só instante,
Um instante de amor !
A turba passa alucinada, uivante,
Ou somente indiferente...,
São como as ondas do mar
Serenas ou em turbilhão
Vêm e vão... vêm e vão...
Enquanto o só
Amargurado,
Falho de dó
Caminha desamparado
Por entre a gente

24/X/2004 Reival


Pela estima de minha amiga Virgínia e pelo interesse que entendo merecer a sua poesia
transcrevo para aqui o que publiquei em “O COMERCIO DA PÓVOA n.º44 de 11/11/04 :

(...) Com a ênfase que lhe é devida, honremo-la com o epíteto de poeta a esta senhora da arte escrita. Não poetisa, por simples concordância de género . Poeta é o título honorífico que a consagra. “Alma de poeta”é a expressão que muito bem cabe para aludir ao sentimento que as suas pequenas produções nos transmitem com tanta devoção. De longe, no tempo, venho eu a admirar o seu estro, já aqui o declarei, mas, compreender-se-á a minha fé na arte que me coube, por dever de ofício (fui professor de literatura) estudar e transmitir, a quem me competia sensibilizar para o seu valor cultural
Para mim próprio, já tenho afirmado, também neste lugar, que a literatura é a arte das artes, já que, pela palavra se pinta, se esculpe, se modela e se musica. E a fraude não cabe no seu espaço.
A verdadeira poesia é metáfora. A metáfora eleva e pluraliza o sentido da palavra e é neste rumo que vou tentar fazer a leitura da prenda que a Reival, generosamente nos oferece:

Olhos são o espelho da alma , logo, quantas almas sofrem nas trevas? Sem esperança que a dor acalme estão presas à sua cruz. Instrumento conotado com a alma e é símbolo do limite máximo do sofrimento ( Cristo morreu crucificado). Almas (diz agora) angustiadas pelo abandono, sem caridade, sem dó, do seu semelhante, alheado pelo egoísmo. Cireneu é a metáfora da ajuda. Simão o cireneu da Bíblia, por amor, ajudou Cristo a levar a Cruz ao Calvário. Mas, aqui não há um instante da manifestação do amor de alguém A turba, isto é, o mundo louco, uivante ( os lobos uivam) ou alheado da sua existência ondula, em fluxos e refluxos ( as ondas do mar vêm e vão...) em remoinho ou serenamente ( é a guerra ou a paz). O só ( aqui o sujeito é singular) evoca os sonetos de António Nobre para um sentido do maior abandono.
Sintetiza, nos últimos cinco versos, muito apropriadamente, o que um ser humano concreto ( já não são as almas por abstracção) padece na sua dor de total isolamento por entre a gente.

Conclusão : É muito difícil , senão impossível reescrever o poeta, porque ele não expressa ideias, mas antes exprime sentimento.

Friday, July 07, 2006

O MAR

Conto de Libânia Feiteira


O banco de madeira continua na cozinha, junto à janela. Nunca mais se sentou nele.
Não voltou a olhar o mar.
Fora da avó, depois da mãe, agora fazia anos que lhe pertencia.
Junto à janela, permitira-lhe zelar pelos filhos que brincavam à porta de casa enquanto fazia a renda, descascava as batatas ou o feijão, enquanto dava uns pontos na roupa usada.
Tivera a importância de um posto de vigia. Ali se sentara a fingir que não dava pelas horas, noites adentro, e as mãos sempre, sempre a trabalhar.
Ali se sentara quando os filhos eram pequenitos, para os amamentar. O António primeiro, mais tarde o Mário.

Olhou-se distraidamente no espelho.
O corpo conserva ainda uma certa frescura e ela sabe-o. Sente-o, quando um arrepio lhe percorre as pernas, os braços, os seios. Quando os apalpa por baixo do lençol, duros. Esse é o momento em que o vazio é maior, em que a solidão a oprime como mãos fortes, em volta do pescoço, a apertar.

Quando se casou ficou a viver aqui, na casa onde nasceu. Aqui mesmo, defronte do mar. É um bairro pobre, de pescadores. As casitas todas baixas, brancas, a porta a dar directamente para a rua de terra batida.
Aqui viveram os pais. Daqui partiram os dois irmãos a procurar vida melhor em terras distantes.
A casa foi a herança que lhe coube. É tudo o que lhe resta da família que foram. Herança carregada de recordações! Dos olhos da mãe inquietos, ansiosos. Dos olhos martirizados da mãe quando o mar lhe levou o companheiro, ali mesmo, à entrada da barra, quando regressava já a casa.
Tempos de miséria que quisera esquecer.

Por isso, em cada dia, em cada hora, rezara para que o seu homem largasse a faina do mar. Porquê o mar? Não tinha ele tido tantas possibilidades de arranjar trabalho em terra? Não lho suplicara ela, os olhos feitos de lágrimas, enquanto se amavam a cada reencontro?

Ela sabia que cada despedida podia ser a última.
Por isso, quando lhe vieram contar, o que recebeu foi a notícia mil vezes imaginada.
As mãos escorregaram-lhe do colo.
Os olhos pararam.
Não ouvia os filhos. Não lhes sentia as mãos solidárias afagando-lhe o rosto e os cabelos.

Nos dias que se seguiram sentiu-se a ser içada de um poço, lenta, dolorosamente.
E chegou ao cimo porque os braços dos filhos se fizeram a corda a que se segurou.
Os olhos, pisados, foram-se entreabrindo, devagar, que os feria a luz.

Passado um ano não pode ainda ouvir falar do mar. Não voltou a olhá-lo. Os olhos baixam-se instintivamente de cada vez que sai e só voltam a erguer-se quando as casas, ao fundo da rua, formam uma cortina de cimento.

O jornal, que o filho mais velho deixou sobre a mesa, traz hoje uma notícia sobre a tão prometida construção do porto que há-de impedir que o mar continue a ser a sepultura de tantos homens.
Nem chegou a ler.
Nada do que diga respeito ao mar lhe interessa! Não quer saber dele! Nunca mais!
Chega-lhe ouvir-lhe a voz rouca, ameaçadora, durante as longas noites de invernia. Chega-lhe ouvir, como hoje, a ronca a anunciar o nevoeiro. São sinais de morte que lhe tolhem os nervos, lhe encurtam as horas de descanso, lhe trazem a imagem das mulheres aos gritos na praia, desgrenhadas, as mãos crispadas numa prece inútil.

Deitou-se cansada. A fábrica mói-lhe os braços. As longas horas de pé engrossam-lhe as pernas.

Mas não chegou a repousar. Acordou a meio da noite, num sobressalto, com o barulho do mar.
O vento, feito com ele, a forçar-lhe a casa. A tentar abrir portas e janelas.

Saltou da cama.

O mar a uivar, desesperadamente, como nunca o ouvira antes.

Protegeu as janelas. Encostou a arca velha à porta. Os uivos a entrarem agudos, como lâminas afiadas, por todas as frestas. A estalarem-lhe a cabeça.

Impotente, saturada, sentou-se na cama. Cobriu os ombros com uma manta.

Ficou a ouvir.

A concentração a esculpir-lhe vincos fundos no rosto. A engolir-lhe os olhos. A convocar-lhe todos os sentidos.

E o tempo a passar.

E o mar aos uivos. A dilacerar o corpo na praia. A atirar-se contra as muralhas. A fazer das ondas as garras com que rasga o vestido negro da noite.

E a ronca aflita, maternal. Com a voz já rouca de tanto gritar o perigo. De tanto suplicar cautela.

Estavam ultrapassados os limites da resistência de que os nervos são capazes.

A amálgama dos muitos sentires de que se tece a loucura estampou-se-lhe no rosto.
Convenceu-a de ter sido ELA a causadora daquela fúria.
Meu Deus, como não vira logo!!! Claro! Não era outra coisa!!! Ousara desprezá-lo! Voltara-lhe as costas! Enlouquecera-o!!! Estavam vingados em si, o pai! O marido!! Todos os mortos que, desde criança, vira darem à praia! Todos os que foram engolidos e nunca mais apareceram! Todas as mulheres que ficaram sozinhas! Todos as crianças que ficaram sem pão!

O sorriso cresceu. Cresceu. Abriu-se numa gargalhada que se desdobrou em gargalhadas imensas, absurdas, que percorreram a casa, acordaram os filhos. O rosto fez-se uma máscara de nervos tensos. Arrepiados. Só esgares.

- Mãe! MÃE!

E ela, a gargalhar:
- Ouçam-no, filhos! Enlouqueceu! ENLOUQUECI-O!!!

- MÃE!

E ela a gritar:
- O MAR ENLOUQUECEU!

Conseguiram deitá-la. Desfalecida. A chorar e a rir. A murmurar coisas sem nexo.

Só muito mais tarde, quando o mar se acalmou, ela conseguiu finalmente serenar.

Adormeceram, ambos, exaustos pela violência do desafio.



A minha leitura :

Tentar parafrasear o conto seria grande estultícia. Apenas umas anotações para uma interpretação mais profunda, a tentar comungar da emoção que a escritora tão sabiamente nos transmite :

O motivo do conto é a vida da mulher poveira: filha, companheira e mãe de pescadores.
Emana de uma vivência da autora no espaço em que ela viveu, não fisicamente, mas espiritualmente pela sua descendência de gente do mar que lhe comunicou o sentir, os sobressaltos, a angústia permanente na batalha pelo pão arrancado ao elemento impetuoso que a autora, com uma admirável arte, tão bem animiza (... . " a fazer das ondas as garras com que rasga o vestido negro da noite") Sublime, também, a personificação da ronca, numa atitude humana, frontal à fúria demolidora do mar, : “e a ronca aflita, maternal. Com a voz rouca de tanto gritar o perigo. De tanto suplicar cautela”
Belas e sugestivas metáforas concorrem para a densidade emotiva da sua arte de contar : "Nos dias que se seguiram sentiu-se a ser içada de um poço , lenta,dolorosamente. E chegou ao cimo porque os braços dos filhos se fizeram a corda a que se segurou" . Só o amor dos filhos a podia fazer voltar à vida.

O valor da sua arte culmina com o clímax do sofrimento d’ “ELA” , a mártir, que a leva à loucura.

LIBÂNIA FEITEIRA

Fez o Curso Geral de Teatro e o Curso Superior de Educação pela Arte no Conservatório Nacional de Lisboa.
LIBÂNIA FEITEIIRA nasceu em 1950 na Póvoa de Varzim.É licenciada pela Universidade de Viena em Línguas e Literaturas Modernas (variante de Português / FrancêsViveu em Moçambique, na Alemanha, no Senegal, na Áustria e na Austrália.
Vive actualmente na Indonésia.
Libânia Feiteira tem colaborado com imagens de trabalhos seus sob o tema "Criatividade Artística" no Garatujando que conta, agora, também com a sua colaboração literária em forma de contos, sob a designação " Aqui entre nós" título de um livro a publicar
Entretanto o GARATUJANDO publicou já os seguintes contos de Libânia Feiteira:
A minha Princesa............................................1 Janeiro 06
Era o tempo.................................................26 Janeiro 06
Não te largo mais a mão..................................7 Fevereiro 06
Os olhos da alma..............................................17 Março 06
O Santo que lhe deu o nome ..................................15 Abril 06
O Mar ............................................................26 Junho06

Sunday, June 18, 2006

LUÍSA DACOSTA


Sinto-me verdadeiramente empolgado na leitura das obras de Luísa Dacosta. Seus textos são autêntica prosa poética São metáforas de luz e som; arte de pintura e de harmonia musical.
Isabel A. Ferreira diz no seu Preâmbulo do livro “Luísa da Costa - no sonho, a liberdade” : (...) Foi a partir de então que comecei a render-me à força da narrativa de Luísa, límpida e ausente de lugares-comuns e parti para a descoberta daquela que escreve como quem faz renda, arrancando da palavra/bilro novas sonâncias encantatórias, que em nós ficam ecoando como vozes longínquas. Escrita/ pintura feita de palavras de água púrpura, rósea, anil, violeta que transforma os textos em recriadas aguarelas, e molda paisagens, seres, emoções e sentimentos...
“NA ÁGUA DO TEMPO – DIÁRIO” é um pouco da sua biografia, coligida de notas, de seus papeis arrumados pelas gavetas. Anotou, como por acaso , alguns factos que, por algum modo, entendeu dever registar.São coloridas peças literárias . A partir do ano 1948 até 1987 fala de suas numerosas viagens e estadas, casas onde morou, e A VER-O-MAR é uma das suas mais vincadas referências.
Para confirmar a riqueza metafórica da sua prosa poética, apenas uns pequenos excertos do prefácio que Luísa Dacosta, ele própria escreve:
Na água do tempo, um olhar naufragado. Nos limos das profundezas, que guardou da poeira dos dias ? Pouco... e ansiava a Luz. Nada tinha ficado do peso insuportável da desolação. Nada da gota, breve, da alegria (...)
(...)
O que era o amanhecer, lunar , das colinas do seio comparado às profundidades, nocturnas, do que estava para além dos sentidos: as dormências do que não sabemos pelo olhar e pela metáfora e são tumultuar obscuro? E depois, como decidir, era a sede dela que ele bebia, ou a sua própria sede que acalmava e procurava estancar ? O “outro” existe realmente ou somos ainda nós ? Ah! Tão apetecido corpo e tão talhada alma ! Noutras casas, depois noutros andares, que lhe mostrava o seu espelho interior ?
(...) - - Luísa Dacosta refere-se, muitas vezes, na terceira pessoa. Como que haja outro ente em seu próprio corpo.

Saturday, May 20, 2006

ISABEL A. FERREIRA DIALOGA COM LUÍSA DACOSTA (Despedida do moinho )

Excertos :
.
“Regressemos a A-Ver-o-Mar e ao moinho, que, como se viu, teve uma importância primordial na vida e na obra de Luísa Dacosta. Seguindo o seu percurso bibliográfico, reparamos que as suas duas últimas publicações, À Sombra do Mar e A Maresia e o Sargaço dos Dias, ocorreram respectivamente em 1999 e em 2002, e constituíram como que um adeus àquele lugar que fora tão seu.
(...)
Aquele recanto de A-ver-o-Mar nunca mais será o mesmo sem a presença de Luísa que, pela manhã, costumava abrir a janela da terra, para que até si chegassem as vozes daquelas gentes que tanto amou, e com elas povoar a sua solidão. E, ao entardecer, a janela do mar, por onde recebia o crepúsculo, o murmurinho das águas e os seus segredos, e o canto das gaivotas , como que saudando a sua lucidez .

(...)

Adeus !
Como quem cega os próprios olhos
tinha fechado, pela última vez ,
a janela do mar.

Dos seus passos, apagados da beirada ,
nenhum sinal restava.
Podia partir
.
Só o soluço do vento e das águas
tentava caligrafar uma ausência
nos ramos do dia.”
.
In À Sombra do Mar
(...)
O moinho de A-Ver-o-Mar , castelo de um reino, banhado por águas de muitas marés, lugar onde Luísa concebeu muitas das suas ilusões e afogou tantos dos seus sonhos, saíra, inesperadamente da sua vida. Este fechar a janela do mar, estes passos apagados, este soluço do vento , este adeus, foi a derradeira despedida de um lugar onde deixou o seu génio criador e a poética dos seus dias. Foi sobretudo um adeus a um lugar muito amado.”
(...)
Sem mim, depois de mim ... Eternamente. Luísa é para A-Ver-o-Mar como os rochedos das suas praias. Terá a autora a percepção plena de que se imortalizou, ao imortalizar o lugar, as gentes e o seu presente de amor, nas palavras, tão imbuídas de arte poética, que teceu ?
.
... tudo o que escrevi sobre A-Ver-o-Mar foi uma necessidade de amor e uma necessidade de envolvimento com aquela gente, dando voz a umas mulheres que eram analfabetas e a voz a homens que eram analfabetos , mas que tinham uma riqueza, uma experiência de vida, umas dores e umas limitações que tentei que fossem colmatadas...

"Soltou-se, dos abismos, o búzio do vento. Que dor se esfarrapa e franja de encontro aos penedos? Que voz, dolorida ,endoidada,cavalgando ondas e crinas de espuma, espraia desesperos e uiva pelas margens da noite"

PARA QUANDO A HOMENAGEM ?


Reedição do texto publicado no jornal “O Comércio da Póvoa de Varzim” em 13 de Maio de 2004


O nosso Município, no “Dia da Cidade”, 16 de Junho, vai prestar homenagem a instituições e personalidades que, pela sua acção em determinados campos de “cultura e lazer” têm dado o seu contributo para o enaltecimento desta ditosa urbe nossa amada.
Assim, ao Clube Naval Povoense, vai ser atribuída a “Medalha de Reconhecimento Poveiro – Grau Ouro” por proposta de Macedo Vieira que realçou este merecimento pela acção empenhada em prol da cultura desportiva, direccionada para o elemento que empresta à Póvoa a sua natural grandeza, o Mar.


À escritora Luísa Dacosta será imposta a “Medalha de Cidadão Poveiro” que indubitavelmente a merece porque, embora transmontana de berço, esta é obviamente, também , a sua terra de eleição.

Cumpre-nos reconhecer o afecto que tem prestado à Póvoa, manifestado com a mais valia da sua obra literária, como um bom alanco, por esta distinta via , para a projecção da actividade poveira, num maior espaço intelectual , objectivo bem esclarecido dos responsáveis desta afortunada terra tida sempre como grata a quem, por algum modo, a glorifica.

Luísa da Costa passou largas temporadas na casa sobranceira à praia de Esteiro, que se vê na imagem. Familiarizou-se com a gente humilde de Aver-o-Mar ; pescadores, sargaceiros e seareiros que são, afinal , os que têm estas ocupações de sobrevivência: homens e mulheres do mar e da terra. Fê-los interlocutores amados nas suas “Crónicas de Aver-o--Mar”, extraídas do real quotidiano. Dá-lhes a verdadeira vida no seu habitat. Traduz foneticamente, com a maior fidelidade o seu linguajar, pincelando fielmente a cor local . Chama-os, familiarmente pelos nomes e alcunhas. Vive com eles. Agrada-lhe deixar-se transportar nas suas carroças para o campo, pegando-lhes nos filhos ao colo, enquanto amanham a terra para a batata e o milho. Conhece as praias e as penedias, desde “Fragosa” até à muralha “Cabo de Carreiro” e “Aradinha”. Refere, bem conhecedora, os apetrechos do mar, da pesca e da apanha do sargaço.

Então, seu estilo é singular, não lhe assenta uma vulgar definição. O discurso fluí com alternância natural da descrição dos cenários e a acção dos reais actores. O ritmo, por vezes vivo, passa a bonançoso, como a influência da ondulação do mar de Esteiro, que pode contemplar do seu moinho. Há um verdadeiro encantamento na sua obra que nos transmite um sentimento de amor, de apego às pessoas e às coisas da sua vivência, naquele ambiente . O seu sentido poético começa logo no prefácio que é um hino à vida dos seus heróis no seu pequeno mundo.

Penso que, no entender de quem me lê, será desnecessário outro argumento para garantir a certeza de que a 16 de Junho próximo, a vila de Aver-o-Mar aproveitará a oportunidade da anunciada homenagem que o nosso Município vai prestar a Luísa Dacosta, para também lhe afirmar o seu particular reconhecimento. Para o efeito, permito-me sugerir um gesto simples que pretendendo distinguir a escritora, se honrará mais a si própria esta terra que foi berço de Francisco Gomes Amorim .


Dar o nome da homenageada a uma rua importante é o menos que se pode fazer para memória da gratidão que, eternamente, esta vila lhe ficará a dever. Nesta conformidade, nenhuma mais ajustada e perfeita do que a marginal ao lado do que foi o seu romântico moinho.A denominação que se lê na placa é : “Avenida do Jardim da Praia”. É inimaginável um tal topónimo, já que não há ali jardim algum. E que houvesse, não revelaria, o facto, uma evidente pobreza de imaginação, para não dizer incultura, do seu ou seus autores ?Mais sonante ficará o nome de Luísa Dacosta porque despertará sempre na consciência dos averomarenses , que transmitirão aos filhos a memória da pessoa muito importante que com eles conviveu e lhes pegou, muitas vezes, ao colo.
Desnecessário será também lembrar que o acto deverá anunciar-se com a devida solenidade do descerramento da placa toponímica.


.....................................8.05.04…………………… Dimas Maio

LUÍSA DACOSTA É CREDORA DE GRANDE GRATIDÃO


O texto que se segue foi, na sua data, publicado no jornal “O Comércio da Póvoa”Reedito-o aqui, nesta oportunidade, confiado que a actual Junta de Aver-o-Mar terá em conta remediar, de algum modo, a ingratidão da freguesia com a responsabilidade da anteriorJunta para com Luísa Dacosta.



Luísa Dacosta“...é credora de eterna gratidão...”
Em caixa, na primeira página deste nosso jornal de 14/8, é referido assim o preito que a Câmara da Póvoa , rende, em sua acta 12/97, com a promessa “de mais condigna homenagem que a seu tempo promoverá ...” à insigne escritora vila-realense transmontana, na oportunidade da manifestação calorosa de apreço e simpatia que a “Comunicada Escolar da Francisco Torrinha” lhe dispensou na qualidade da sua prestigiante professora que passa à situação de aposentada.
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No excerto não é referida Aver-o-Mar concretamente, mas tão-somente a Póvoa de Varzim e “a alma do Poveiro presente em belíssimos textos, imperecíveis actos de amor”
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Engano a corrigir . Na verdade, Aver-o-Mar pertence ao concelho da Póvoa, mas o Averomarense tem identidade própria e foi ele, foi este povo, foram os homens e mulheres, simultaneamente pescadores, sargaceiros e camponeses desta terra de “A-Ver-o-Mar” que inspiraram as afectuosas “CRÓNICAS” de Luísa Dacosta, colectânea de textos de verdadeiro colorido local a tocar o poético e o nostálgico. Há ali a graça do coloquial com o acento fonético do linguajar da nossa gente. Sente-se e comunga-se da vivência das personagens no seu habitat. Há ali vida duramente vivida . Há alegria e tristeza . Há facécia e agrura nos diálogos que a autora tão fielmente sabe escutar.
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O drama está ligado ao rigor da existência dos protagonistas e figurantes reais destas peças. Luísa Dacosta condói-se e solidariza-se com o sofrimento das mulheres escravas que o "home" maltrata. Vai com elas na carroça para o campo e carrega-lhes os filhos ao colo. Sabe o nome de todas e familiariza-se com os apelidos por que são conhecidos os seus vizinhos. Refere-se às praias e penedias de que eu posso confirmar a precisão.
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Luísa Dacosta, por coincidência ou inspiração, lembra “Alphonse Daudet”, autor de “Lettres de mon moulin” Este escritor francês, nascido em Nimes, mas vivendo normalmente em Paris, adquire um “moulin à vent” numa colina da Provença e ali se isola , como autêntico eremita, e escreve suas “lettres de mon moulin” (cartas de meu moinho)que traduzem, com rigor, toda a paisagem da sua vivência local. A nossa escritora compra igualmente um moinho de vento assente sobre uma duna da praia de Esteiro, que adapta a residência de férias e escreve aí as suas “CRÓNICAS DE A-VER-O-MAR”, com personagens e elementos do ambiente que a rodeiam, procurando a fidelidade da cor local, e há elementos lexicais e fonéticos perfeitamente condizentes.
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Na minha actividade de professor das disciplinas de Francês e Português (língua e literatura), teria hoje planeado, para algumas aulas, um estudo comparativo ou uma análise intertextual das duas obras. Tenho-as aqui à mão e, pessoalmente, encanta-me verificar pontos de encontro e acentuado paralelismo em textos escolhidos para o efeito.Estou porém, também na situação de aposentado, mas fica aqui a promessa de que tudo farei para despertar as consciências para a gratidão que todos lhe devemos e, oportunamente, será prestada homenagem à altura do valor da minha emérita colega que, não obstante afastada agora das suas aulas na Escola Francisco Torrinha, Deus lhe conservará energia para continuar a docência no campo pedagógico de horizonte mais vasto.
17-08-97 . Dimas Maio

EM AVER-O-MAR - SEAREIROS, trabalhadores da terra e do mar


(Reedição do texto publicado no jornal “O Comércio da Póvoa de Varzim” , em 27/7/1997)

Luta do povo que, de perto, sempre admirei.

Nos dias de hoje, espantem-se os filhos e netos, da luta pela vida daqueles com quem convivi nos meus tempos de menino e moço !

Eram então “Araus” nome com que os de cima, os lavradores, pretendiam depreciar os de baixo, os da orla marítima, que, trabalhando duramente a terra, mais arduamente ainda se lançavam no labor do mar.Todavia, não era nada depreciativo este epíteto, porquanto arau era uma palmípede marinha, vista frequentemente na praia , mergulhando para “pescar”. Por vingança, os Araus, chamavam “Suínos” aos outros. Esta fronteira foi-se diluindo e estes sarcasmos recíprocos fazem sorrir a gente de hoje. Muitos Araus eram ricos seareiros. E este sim, era o título que os enobrecia.

Seareiro, aqui, era o que fazia as suas próprias terras e, por vezes, ainda as dos outros e ia colher no mar o adubo que as fertilizava. Batata era a sua principal cultura e pilado (pequeno caranguejo) o fertilizante orgânico mais utilizado. O excedente era posto em feira, em pilhas ou montes, na praia de Fragosa. E, então, era ver o movimento, a azáfama dos lavradores das freguesias vizinhas e até dos concelhos de Famalicão e Barcelos, carreando o precioso enriquecedor da fertilidade dos seus lameiros e nabais.

Para arrancar da areia da praia para a estrada, de piso mais duro, os carros de bois, de grandes caniçadas, emprestavam eles uns aos outros os seus animais para dobrarem as juntas. E aí começavam, enérgicos, os apelos dos seus donos: Eh... Pisco!...Eh... Amarelo! Eh... boi lindo! Eh!... E os bois retesavam-se todos, num esforço danado.

A este afã em terra, outro labor no mar o excedia:
As companhas – de dois barcos de pilado ( espécie de pequenas lanchas) saiam, de madrugada , barra fora e, não raro rumavam à "beirada" ou a Cutinhais ( Vila Praia de Âncora) ou a Afife, quando nada havia nas "calas" de Esteiro e de Lagoa. E, se as águas não corressem, permitindo que as redes de saco arrastassem pelo fundo, em poucos lanços, enchiam os barcos. E, porque o alar das redes de saco se fazia à força de braço, os cabos limavam os calos das mãos que ficavam em carne viva. Se fazia calmaria, no regresso, a vela de nada servia e então, os barcos, com apenas um palmo de borda fora da água, eram movidos, ou melhor, arrastados a remo, num esforço dorido a que os próprios diziam “levar uma coça de remo”

Era assim, quotidianamente e durante uma época que começava no Verão e terminava nos princípios do Outono. Por vezes, o mar puxava de repente e, então, era a aflição do povo na praia perscrutando, no horizonte nebuloso, as companhas que da barra se aproximavam : “ Aí vêm os barões!... Aí vêm os Flores!... Está a chegar o tio Piloto!......Olha! aí vem o Pombal! E o Tio Rebelo!... O Doutor (Gueiral) não chega !. É sempre o mesmo teimoso !...Mas, Graças ao Senhor, ao cair da noite , tudo está a salvo. Era assim, naquele tempo em que o labor e a angústia se emparelhavam.

E eu sinto-me incapaz de traduzir, para aqui, a realidade que, da minha memória, jamais se apagará .

..............................................24/7/1997 ........ Dimas R. de Castro Maio

Friday, May 19, 2006

C O N C E I T O S


“ O caminho faz-se ao andar” ( poema de A. Machado)
E eu decalco: o caminho faz-se caminhando...

Sento-me em frente ao computador e começo a bater as teclas, a tentar um estímulo para despertar a minha inspiração. Frequentemente esse fenómeno acontece : gosto de escrever , porque esta é a actividade que me motiva e ordena o pensamento e porque imagino que haverá alguém que me escuta, neste caso lê. Sinto a necessidade de comunicar, “vício” que ficou da minha actividade profissional Digamos que esta é uma ocupação de subsistência mental: o tempo não para, mas tenho a pretensão de resistir ao envelhecimento.

Falta-me um tema para desenvolver e conseguir um texto que desperte o interesse de meu imaginário leitor, tanto pelo conteúdo como pela forma. Aliás, das leituras que faço dos jornais dou sempre preferência aos articulistas cujo estilo conheço, assente tanto na clareza e vivacidade da sua comunicação como pela perfeita adequação dos termos e harmonia na estrutura da frase. Dos outros, dos que não me suscitam qualquer interesse literário, leio os títulos e, quando muito, faço uma leitura cruzada para obter a síntese da sua informação.

Tenho particular apreço pelos periódicos em que os seus colaboradores não estão sujeitos a uma censura interna : os artigos de opinião ou de teor crítico são, como é de preceito jornalístico, da inteira responsabilidade de quem os elabora. Apenas um requisito se impõe e esse é , como a educação cívica e princípio básico das regras sociais o requerem: o da não ofensa pelo insulto, o mesmo que o da não linguagem de baixo nível social, o da negação do termo soez , o da recusa do calão ordinário ou o da expressão obscena . Esta é a sinonímia que redunda na concisão do lema : o respeito pelos outros é o respeito por ti mesmo ou, respeita para seres respeitado.
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A ofensa gratuita contra a integridade moral de outrem repercute-se, tal “boomerang”, na honorabilidade do ofensor. Fazer a crítica de actos públicos ou de entidades socialmente responsáveis não será , obrigatoriamente, a constante maledicência sem argumentos plausíveis ou pelo direito de desafronta contra quem agride a sua própria dignidade..Dignidade ! Eis a palavra estímulo de que acima referi e que determina o assunto com que me vou ocupar concretamente, pronunciando meu entendimento sobre este conceito :
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Dignidade significa auto-estima, amor próprio que se cultiva com atitudes e actos que mereçam a atenção elogiosa de quem nos é próximo; é esse o maior bem por que um cidadão que se preza deve pugnar e manter no seu mais elevado valor, até na adversidade. Aliás, é nesta situação que o pundonor emerge e engrandece o carácter do indivíduo perante quem com ele se relaciona. Se, pelo contrário, ao contratempo não reage e se presta a ser fantoche ou bonifrate de quem, sem escrúpulos, por uma prometida côdea, o manipula a seu belo prazer, cometendo, em consciência, deslealdade para com quem teria motivos de sobra para se mostrar grato, esse indivíduo irá de mal a pior no conceito dos cidadãos íntegros.

Pode, o amor próprio, redundar em orgulho? E, por que não, se esse sentimento não revelar menosprezo por ninguém, mas, pelo contrário, se alicerçar numa conduta moral irrepreensível, também e, por isso mesmo, no merecimento de amizades sinceras. E, ainda, quem não se sente ufano quando é reconhecido pela sua inteira dedicação e sucesso no trabalho em prol da sua comunidade, por exemplo ? Mas se, neste caso, é perfeitamente legítimo no indivíduo o sentimento de orgulho, se este degenera em vaidade, é em animosidade dos seus concidadãos que o mesmo indivíduo transmuda a estima que lhe era merecida.
Vaidade é vanglória, fatuidade, presunção; é menosprezo por quem julga que lhe é inferior ou complexo de espírito mesquinho que teme perder a sua falsa auréola de ídolo, adorado pela crença de quem possa iludir com essa demagogia.

Orgulho é, por outro lado, antónimo de humildade, quando esta se constitui em submissão que leva frequentemente à subserviência. O orgulhoso não se deixa tornar humilde, o mesmo que dizer, não se deixa humilhar, antes reage com altivez perante quem pressente que o tente fazer. Entende ter criado uma situação de independência e só aceita o que julga ser-lhe merecido, incluindo a reciprocidade ou o correspondente gesto de reconhecimento pela sua lealdade. Neste capítulo, por vezes, acontece alguma situação de incomodidade sobre a atitude a tomar: obedecer de pronto ao impulso de recusa e demissão do cargo ou compromisso que voluntariamente tenha assumido, face a uma hipotética ofensa O orgulho não contradiz a modéstia. Ser orgulhoso não é deixar de reconhecer a simplicidade da sua condição social; é, antes, sentir-se em perfeita sintonia com gente que vive apenas à custa do seu trabalho honesto e, aí sim, merecer a simpatia e admiração da sua classe por alguma atitude de destaque que contribua para o prestígio colectivo.
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A propósito da diferença, que considero, sobre os conceitos de vaidade e orgulho, é com intenção que aqui os tenho pretendido distinguir exactamente para pôr em destaque a pertinência da propriedade dos termos: sinonímia não quer significar o indistinto emprego de um ou outro vocábulo, em alternativa, mas sim dependendo do contexto em que se inscrevam .

Assim se eu disser: Fulano está todo vaidoso por ter recebido uma medalha pelos bons serviços que tem prestado à comunidade; o termo vaidoso é perfeitamente substituível pelo seu sinónimo orgulhoso, não há a mínima alteração do sentido. Mas, se eu disser : Sicrano é um grande vaidoso, menospreza toda a gente que considera de condição socialmente inferior e até aos que são de sua classe se não forem seus louvaminheiros, se revela de uma condenável sobranceria. Aqui o vocábulo vaidoso não cabe, em substituição, com a mesma propriedade, de orgulhoso...
E, assim, andei mais uma etapa do caminho que, aqui e, até agora, sem obstáculos à afirmação da minha própria dignidade, vou caminhando.
Dimas Maio

FIGURAS DE ESTILO - A IRONIA




A IRONIA DAS RUINAS em A ver-o-Mar
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Durante a lacuna na continuidade de minha colaboração para “o Comércio da Póvoa”, motivada por influências estranhas à minha vontade de cumprir, com dignidade, o compromisso, que a mim próprio me impus, da assiduidade semanal, vários foram os leitores amigos que me interrogaram sobre a hipótese de eu voltar aos temas de carácter literário. Confesso que fiquei agradavelmente surpreendido com esta solicitação, até pela superação do receio de me julgarem pretensioso, a querer dar lições aos meus “alunos”.

Mas, já agora, ganho alento para dizer que um periódico local, para além de sua estrutura de base que é o jornalismo de informação, mais ou menos pormenorizada ou crítica, mormente de eventos ou actividades locais, há-de ter em conta, não perifericamente, mas como uma mais valia, intimamente contígua, uma componente de cultura; aqui, serão de adequada importância algumas noções literárias. Assim se alarga e enriquece o espaço da sua acção sócio-cultural. Diria mais: é neste âmbito, assim alargado, que um Semanário condigno, mais categoricamente se afirma. Conclusivamente, leitura deverá conjugar-se com cultura
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Nos temas que trato, farei, quanto possível, uma aplicação prática das teorias ao que, de imediato, é de interesse dar como exemplo.

Reatarei também o desenvolvimento de outros temas, dentro da perspectiva ou o título que vinha encabeçando os meus textos e, mais abrangente, de “ o que está bem... o que está mal...” embora, de ora em diante, jamais expresso.
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I R O N I A , (definição) Ironia (do grego eironeía, simulação) figura de retórica com que se exprime o contrário do que as palavras naturalmente significam . Aquilo que representa contraste frisante com o que logicamente devia ser.Há ironia quando as palavras significam o contrário do que no íntimo pensamos, ou estão em desacordo com a realidade. Ex. – que belo tratante me saíste; és um óptimo filho, não há dúvida ! ( na realidade trata-se de alguém que não se comportou, como devia, com o pai)

(O contexto em que se fala ou escreve permite que, o ouvinte ou leitor, perceba o sentido do que se diz).

“A Ironia ,como atitude filosófica supõe um dualismo básico de mundividência que permite precisamente a simulação subtil de dizer uma coisa por outra . Em Sócrates a Ironia é uma espécie de docta ignorância, mais de malícia que de humildade sincera, desconfiança simulada nos próprios méritos; ignorância aparente que pergunta sabendo a resposta. “Só sei que nada sei”. Eis o que encerra, paradoxalmente, o fundamento de toda a sabedoria.
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I R O N I A, (exemplificação concreta) A Póvoa de Varzim, para orgulho dos seus naturais, faz o encantamento de quem pela primeira vez a visita e, em cada ano, por efeito dessa contagiosa sedução, se multiplicam os forasteiros para quem, também em cada época, se renovam e acrescentam os atractivos. Os mordomos, ao serviço da anfitriã, têm-se mostrado à altura do fidalgo acolhimento que sempre tem sido apanágio desta nobre Senhora do Mar.
A Póvoa estende-se em belíssimas praias para norte e, em Aver -o - Mar, a começar pela enseada natural da Lagoa, são as mais numerosas e ricas na diversidade.

Muito acertadamente, tem procedido a nossa Câmara em conservar-lhes o peculiar exotismo. Se fizesse nelas a tal “intervenção fantástica”, seria a fantasia dessa promessa, em tempo da campanha eleitoral que, a cumprir-se essa remota hipótese, as mascararia e tornaria irreconhecíveis. Ainda bem que houve um tempo de reflexão e se esmoreceu o ímpeto da Autarquia. Agora, por um novo período de acalmia, sosseguem os corações aflitos, que outra ameaça de melhoramentos paisagísticos que provocariam a descaracterização destas românticas enseadas “onde o canto da sereia vem teu sono acalentar” jamais os apoquentará.

Atente-se no encanto das ruínas que se vêem na imagem. Decoram elas as praias do “Bico da Forcada”, do “Penedo do Sol” e “Amorosa” que ladeiam, artisticamente, a avenida marginal. Lá está o monumento histórico que foi, em tempos remotos, quartel da Guarda-Fiscal. Seria um crime derrubar aquela relíquia da memória do obrigatório manifesto ( o bilhete) para que a mulher do pobre pescador pudesse vender na lota da então vila da Póvoa de Varzim, pagando o competente imposto, as fanequinhas que, até lá, carregava num cesto à cabeça , produto de um trabalho penoso, sobre todos os títulos, incluindo o constante risco do seu “home”perder a vida, quando a fome dos filhos o obrigava à ousadia de se lançar, no barquinho, ao mar, muitas vezes ainda encapelado, porque longos meses de Inverno o retinham na miséria de “não ter com que acender o lume”.

As casas abandonadas, em ruínas, muito justamente não podem ser recuperadas pelos actuais proprietários porque a Câmara Municipal oficializou a sua utilidade pública e promete indemnizar aqueles pela expropriação, com a mais valia dos juros, pelo prazo indefinido em que lhes chegará a fazer o justo ressarcimento.

Mas antes de territorialmente aqui chegarmos, vindos do sul, a partir do termo da praia da Lagoa, pela marginal, temos na praia de “Fragosinho”, contíguas ao “BAR MARIPRAIA”, as ruínas dum “secular edifício” que foi, inicialmente, armazém de apetrechos de pesca e, deixando de ter essa utilidade, passou então a ser escola primária. É de louvar a recusa da Câmara Municipal em mandar demolir aquele monumento consagrado à carinhosa memória das crianças de então, hoje cidadãos activos, mas, já a declinarem para a reforma.
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Usar um estilo irónico para fazer uma crítica, é uma maneira subtil e inteligente com maior probabilidade de se conseguir o objectivo pretendido e, se houver arte para tal, poderá criar-se um pouco de humor a provocar um brando sorriso de aquiescência da entidade ou organismo na “berlinda”. Porém, se é demasiado evidente na intenção do seu autor, perdendo todo o refinamento de dissimulação e é abertamente azeda e agressiva, então, a mesma ironia, redunda em sarcasmo não tendo por objectivo outro que não seja o de ferir mordazmente o alvo em mira.

De minha parte, o que pretendi, neste texto, não foi tão-somente definir e exemplificar a literária figura de estilo, confesso, mas obrigo-me a reconhecer que me falta o “engenho e a arte” para um mais subtil e risonho ironizar. Contudo, intenção minha, não foi utilizar o cáustico sarcasmo para ferir determinadas susceptibilidades e, à francesa, je le jure!
Dimas Maio
Nota - Não foi publicado.

FIGURAS DE ESTILO - ALEGORIA



ALEGORIA LITERÁRIA

ALEGORIA ESCULTÓRICA


A l e g o r i a ( do grego allegoría, linguagem por metáforas). “É um tipo de metáfora (lato sensu) que compara uma realidade sempre de carácter abstracto com um termo metafórico, sempre concreto, visível plástico.

Assim as figuras que rompem da alegoria fixam-se para a representação da mesma realidade”. Ex,: a alegoria da Justiça é representada por uma figura feminina, com olhos vendados. Significa que a Justiça é cega, isto é, aplica-se segundo a Lei e não olha a quem; é objectiva e, em princípio, é aplicada ao rico como ao pobre, ao que detém o poder, como ao simples cidadão comum.

Na arte literária, é ainda típico da alegoria o facto da realidade ser traduzida termo a termo para o plano metafórico e não em conjunto, globalmente como um símbolo. Assim, os pormenores da configuração da alegoria têm, cada um, uma função representativa da realidade a que alude. Temos, neste caso, uma série de metáforas (a metáfora é uma espécie de comparação abreviada, pois dá-se o desaparecimento da palavra ou expressão comparativa)

Como exemplo de figuras alegóricas , pode apontar-se o polvo no sermão de S.to António, pregado em S.Luís de Maranhão pelo P.e António Vieira. O autor encontra no polvo uma imagem da hipocrisia e da traição:

“com aquele seu capelo na cabeça , parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha , parece a mesma brandura e a mesma mansidão” Estas características e, principalmente, a faculdade de mudar de cor consoante o ambiente que o rodeia são os equivalentes, no plano físico, da hipocrisia e do disfarce de que serve a traição – que é a ideia abstracta representada pelo polvo.

(A alegoria pode ser representada por toda uma obra literária: o “Auto da Alma” e a “Trilogia das Barcas” de Gil Vicente, são alegorias )No auto vicentino, a passagem da vida terrena à vida depois da morte é alegoricamente representada pela passagem de um rio, para a qual estão disponíveis duas barcas, a barca do paraíso e a barca do inferno. As almas são metaforicamente representadas por passageiros; o interrogatório a que são submetidas representa o julgamento das almas subsequente à morte; o destino de cada uma das barcas prefigura a salvação ou a condenação eternas. Embarcar numa ou noutra depende do comportamento das almas na vida terrena e esse comportamento determina, portanto, o destino das almas depois da morte.

*Na arte plástica, “a representação de ideias abstractas, encontrou a sua concretização em figurações de vário tipo, mas quase sempre de elementos humanos, cujos atributos têm um significado simbólico alusivo ao que pretendem significar. Muitos vezes, ao lado dos atributos identificadores, a própria acção das personagens representadas constitui o elemento essencial da alegoria”.

Confira-se esta menção com o conjunto escultórico que se encontra na rotunda do cruzamento da Avenida Vasco da Gama com a Avenida do Repatriamento dos Poveiros, aquele a que, por comodidade de referência, é designado muito impropriamente por “estátua do touro”.

Ali se vêem configurados, em posição dinâmica, um trabalhador da terra (agricultor) e um trabalhador do mar ( pescador), usando, na simulação do seu labor, os respectivos instrumentos: a rede que o homem do mar a ele lança; o homem da terra com o bornal das sementes que à terra semeia e um animal, o boi, especial auxiliar do seu trabalho rural.Aquele esplêndido ornamento da nossa cidade resultou da imaginação e arte do seu autor para simbolizar ou materializar a ideia do esforço de braço, no mar e na terra, das gentes trabalhadoras da Póvoa e seu concelho.

Lá estão inscritas, em redor da plataforma da base, as 12 freguesias que o compõem. Simbólica ou alegórica, considerando a meu ver, neste particular, a sinonímia dos termos, justo é dizer que aquela obra de arte é magnífica na sua concepção.

A figura de proa do grande barco à vela, rumando ao norte seguro, na minha leitura, o criador, talvez inspirado na mitologia greco-romana , pretende que o gigante sem cabeça, que na imagem não se vê, simbolize toda a força produtiva do trabalho não intelectual

...............Dimas Maio


FIGURAS DE ESTILO - HIPÉRBOLE


HIPÉRBOLE

Sempre que se recorre às potencialidades da língua para construir uma frase bela, emocionante, expressiva , que traduza a realidade de uma forma criativa, estamos perante um recurso estilístico. Isto é, na arte literária. E nas chamadas artes plásticas, de que potencialidades dispõe o artista para, até certo ponto, traduzir a expressão de que só a palavra o pode fazer fielmente?

A Literatura é a arte das artes, não esquecer.

*Uma figura de estilo muito frequente é a hipérbole (do grego, hyperbolé “ acto de lançar por cima de, além de; de ultrapassar a medida //Excesso, super abundância” ), consiste na representação excessiva de uma pessoa., coisa ou acontecimento; em síntese : é um exagero da realidade. Exs : “um dia meu amor ( e talvez cedo) / Que já sinto estalar-me o coração” – Antero de Quental, Sonetos ; “ao passar os montes (...) parei e, olhando atrás (...) verti lágrimas de sangue” – Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas; “estava um calor de assar passarinhos nas árvores...” - Matilde Rosa Araújo .

A propósito e como exemplo, nas artes plásticas, para ilustrar a definição da hipérbole de que me ocupo hoje, atentemos na “escultura da lota” e vejamos como ela pretende traduzir, no bronze, a inscrição ao lado, transcrita da obra: “OS PESCADORES” de Raul Brandão. Assim, reza a inscrição :

ETERNAS SACRIFICADAS TIRAM-NO À BÔCA PARA APARELHAR OS CESTOS DOS HOMENS VENDEM CARREGAM AS REDES LAVAM-NAS SEM UM FIO ENXUTO NO CORPO METEM O OMBRO AOS BARCOS PARA OS DEITAR AO MAR. ACABADA A PESCA TODO O TRABALHO CABE À MULHER QUE FABRICA A GRAXA QUE TRATA DOS FILHOS QUE FAZ REDES AS LAVA E AS CONSERTA E QUE VAI VENDER POR ESSES CAMINHOS FORA . – RAUL BRANDÃO, “OS PESCADORES” 1932*

As pessoas mal informadas, sobretudo da classe piscatória, protestam contra a fealdade da representação das “nossas avós”: não aceitam que elas tenham sido tão disformes. O escultor quis moldar a alegoria, ali patente, do esforço sobre-humano das “eternas sacrificadas” ao trabalho ingente a que se obrigam como esteios da sustentação do lar. Recorreu à expressão hiperbólica para captar esse simbolismo. É a representação exagerada das marcas vincadas nos seus rostos e corpos pelas agruras, e combate físico, da vida. Deve ser interpretada como expressão do valor moral da mulher com a coragem indomável da luta em prol dos seus, não tendo, ela, sequer, um inútil espelho onde, esquecida de si, não cuidaria de ver reflectidas as suas feições profundamente deterioradas pelas angústias da vida do mar e a ansiedade do pão para os filhos. Assim, este valor de alma, só o bronze o espelhará ad aeternum.Jamais se diga que aquelas figuras são feias !
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.............................. Dimas Maio

LÍNGUA PORTUGUESA - género do nome bebé


GÉNERO DO NOME BEBÉ

Longe vão os tempos em que se condenava a introdução do termo duma língua estrangeira na “nobre língua de Camões”.

Era pecado sem remissão, ou crime de lesa pátria, tal promiscuidade. Alegava-se, em defesa dessa razão, a riqueza vocabular da língua portuguesa, sem necessidade de recurso a estrangeirismos.

O bebé ( menino ou menina) e não a distinção o bebé (menino) e a bebé(menina), erro por ignorância da norma da língua portuguesa que progressivamente se tem generalizado.

É de facto, para mim, arrepiante ouvir ou ler, na comunicação social, o substantivo ou nome bebé precedido de um determinante feminino se o bebé é uma menina. Assim se diz erradamente no feminino: a bebé, uma bebé, esta bebé, etc. Bebé s.m.(do fr.bébé) – criança do peito, criancinha. Assim refere o “ Grande Dicionário da Língua Portuguesa” de José Pedro Machado. De facto, o nome ou substantivo bebé é traduzido, ou melhor, decalcado da língua francesa, cabendo perfeitamente na nossa norma, sem necessidade de ajustamento do seu género. Quero dizer que, em francês, le bébé, un bébé, ce bébé, etc. não admite o feminino: la bébé, une bébé ,cette bébé: ao dizer no género masculino englobam-se os dois sexos; se há necessidade de distinção, dir-se-á : un bébé petit garçon; un bébé petite fille. O mesmo acontece em português: um bebé menino; um bebé menina.

Estes nomes que só têm uma forma com um único género, qualquer que seja o sexo da pessoa que se nomeia, são tradicionalmente designados por substantivos sobrecomuns ; exemplos : o cônjuge, o indivíduo, a criança, a criatura... não se diz: a cônjuge, a indivíduo, o criança, o criatura.

Poder-se-á contra - argumentar que há nomes que têm uma forma comum aos dois géneros, nos quais a marca que distingue o masculino do feminino apenas se encontra nos determinantes ou adjectivos que aparecem a concordar com esse feminino; exemplos: o artista / a artista; o doente / a doente ; o jovem /a jovem , o emigrante / a emigrante, ou talentoso artista / talentosa artista; doente sofredor / doente sofredora; jovem atencioso / jovem atenciosa; emigrante saudoso / emigrante saudosa, etc. - estes nomes são designados por comuns de dois - e que o nome bebé poderia inserir-se nesta série e obedecer a esta regra.

Só que, não é de esquecer ou omitir que, o nome bebé não resulta da tradução mas sim da cópia ou decalque integral do francês e, por consequência, é aceite na nossa língua com a inerência de suas próprias regras, adaptando-se, no entanto, perfeitamente à norma da língua portuguesa, considerando-o um substantivo da série dos designados como sobrecomuns.

Como nota suplementar e para reforçar os argumentos acima produzidos, serve dizer que o substantivo bébé, em francês tem, por sua vez, origem, com o mesmo significado, no termo inglês baby que se traduz também por menino ou menina – “Bébé n.m. ( Baby,1841; de l’angl. Baby) enfant, nourrisson, nouveau-né, petit”.
.....................................Dimas Maio

LÍNGUA PORTUGUESA - emprego da partícula apassivante


VOZ PASSIVA COM A PARTÍCULA APASSIVANTE
Um amigo pôs-me, num destes dias, uma questão linguística um pouco complicada para ser cabalmente esclarecida.
Disse-me que tem ouvido e também tem visto escrito, com muita frequência, as expressões alternativas: vendem-se casas/ vende-se casas; alugam-se barracas/aluga-se barracas (da praia) ; escrevem-se cartas/escreve-se cartas, etc. “Qual das duas formas estará correcta, o verbo transitivo no plural ou no singular ?”
A pergunta é bem pertinente, e, como se imagina, formulada por muitos portugueses com alguma cultura. Mas a resposta fundamentada por um raciocínio lógico e plausível não se encontra em nenhuma das gramáticas consultadas. Nestas, como código da norma da língua portuguesa , a regra geral, é da obediência à primeira versão, isto é, o verbo transitivo na terceira pessoa do plural .
Assim, deverá ser: vendem-se casas; alugam-se barracas; escrevem-se cartas, etc.Trata-se da voz passiva dos verbos que, normalmente, é formada com o verbo auxiliar ser .
Nestes casos a voz passiva é obtida com o uso da partícula apassivante se. Assim, nos exemplos acima, vendem-se casas, na voz passiva, casas são vendidas ; alugam-se barracas, equivale a dizer: barracas são alugadas; escrevem-se cartas ou cartas são escritas, etc. A gramática limita-se a referir que neste caso, o da voz passiva, com a partícula apassivante, não vem expresso o agente da passiva. E aqui é que está o busílis da questão: as casas não se vendem a si próprias; as barracas não se alugam a si próprias; as cartas não se escrevem a si próprias, etc. Na voz activa : (alguém) vende casas ; (alguém) aluga barracas; (alguém) escreve cartas, etc. É assim que entende quem opta pelo conjugação do verbo transitivo no singular: vende-se casas; aluga-se barracas; escreve-se cartas.
Só que, neste raciocínio, aquilo que se denomina partícula apassivante (se), passa a corresponder ao pronome indefinido (alguém), como acontece em francês: on vend des maisons; on loue des tentes; on écrit des lettres, etc., em que “on” é um pronome indefinido que se traduz, vulgarmente, por alguém. Peguemos num só exemplo. Consideremos, na voz activa: vende-se (aceitando se =alguém) casas. Com um pequeno desvio da norma, como acontece no português do Brasil, dir-se-ia: se vende casas. Então, sem alterar a posição dos componentes da frase bastaria substituir se por alguém.Vertamos agora para a voz passiva esta versão: vende-se casas ou alguém vende casas. Teremos então: casas são vendidas por (alguém).
O complemento directo da voz activa, casas, passa para sujeito da voz passiva e o verbo como tem de concordar com o novo sujeito vai para o plural ; o sujeito, alguém, passa para agente da passiva precedido da preposição por, . Assim, quando as gramáticas dizem que não está expresso o agente da passiva, poderá contestar-se que o mesmo é subentendido. Repare-se que o pronome, alguém, quer como sujeito na voz activa ou agente da passiva é sempre o agente da acção.
A questão posta pelo meu amigo, como disse, embaraça quem a pretenda satisfazer por escrito; de viva voz e em diálogo seria mais entendível para os correspondentes interlocutores.
Por isso, caro leitor, espero que a salada russa que me esforcei por tornar digerível não o tenha indisposto. Acredite que me preocupei com essa hipótese e temperei-a o melhor que sabia.
Recordo que, em tempos, Edite Estrela, quando se propôs, pela televisão, dar algumas lições de português, a propósito da conjugação da voz passiva dos verbos com a partícula apassivante se, a substituir o verbo auxiliar ser, disse, apenas, que o verbo transitivo devia conjugar-se no plural, a concordar com o novo sujeito da passiva e mais não esclareceu.
Por minha parte foi, aqui, minha intenção, também e apenas, tentar esclarecer as razões das duas alternativas sugeridas pelo meu amigo. Não tenho outros argumentos para contestar a regra gramatical que é posta também sem mais explicações de lógico fundamento.A gramática é o código que contem as regras para bem falar a língua portuguesa exactamente como um código de leis é para ser respeitado pelo cidadão socialmente bem integrado.
Obedeça o falante às regras da gramática e respeite o cidadão as leis do código jurídico.
..............................Dimas Maio