Saturday, September 23, 2006

SABER LER E ESCREVER A LÍNGUA PORTUGUESA

Reedição do texto, publicado em "O Comércio da Póvoa", n.º 25 de 30/06/05
DENOTAÇÃO / CONOTAÇÃO

Referi, no último texto sob este titulo, que trataria, na primeira oportunidade, do elemento: “sentido conotativo das palavras”. Disse eu então, “que pode ser confuso o emprego de determinado termo em contexto que leve a induzir o leitor a uma interpretação que não se pretendia”. Tentarei esclarecer o fundamento desta minha proposta, começando por definir a dicotomia denotação/conotação, sentido conotativo por oposição a sentido denotativo do signo linguístico.

Partindo do princípio de que não estou a ter a ousadia de escrever para hipotéticos leitores versados em estudos linguísticos, encaminhar-me-ei pela vereda(1) mais curta, de acesso imediato a uma informação elementar, mas pretendendo que seja suficientemente esclarecedora do objectivo a que me proponho.

Denotação - do latim “denotase” (indicar por meio dum sinal, designar), provém do nosso denotar , isto é, revelar ou significar por meio de notas ou sinais; indicar. Dizemos, por exemplo, que a atitude de Sócrates denota coragem e inspira confiança para debelar a crise económica em que o país se afunda. A denotação duma palavra é aquilo que ela expressa na sua aplicação vulgar, mais corrente, no seu stricto sensu

Conotação – “Parte do sentido de uma palavra que não corresponde à significação propriamente dita . É uma espécie de representação mental, subjectiva , simultânea ao significado objectivo”.
Facilitará ao leitor a melhor compreensão para os exemplos que exporei a seguir, se lhe adiantar que “os cientistas e os filósofos tendem mais a usar as palavras no sentido denotativo; os escritores literários confiam na conotação para obter efeitos mais belos e exprimir significados mais profundos”

Fora da arte literária há, porém, outras conotações, algumas de sentido negativo, pejorativo, de insinuação grosseira, insultuosa, obscena.
Vejamos os exemplos e o leitor verificará se tenho sido suficientemente explícito para os entender, no alcance do meu objectivo:
O vocábulo “pão” (significante) significa (denota) substância alimentícia feita de farinha; quando digo, por exemplo, comi pão com manteiga ao pequeno almoço. Mas, se declaro que F... comeu o pão que o diabo amassou, o significante é o mesmo mas o significado altera-se, ou melhor, alarga-se (conota-se) como sustento, trabalho, vida. Tem o mesmo sentido na oração: “... o pão nosso de cada dia nos dai hoje Senhor...”

A palavra “mulher”, denota um ser humano, feminino de homem, mas dependendo do contexto ou acentuada entoação oral, pode ter uma forte carga conotativa, de sentido pejorativo ou insultuoso: mulher da vida; rameira; fraca reputação.

Vejamos o termo “rapaz”: aplica-se, normalmente, com o significado (denotação) de jovem, mas também pode ser conotado como leviano; indivíduo sem palavra ; canalha... dependendo do contexto em que é inserido.

***
Para rematar meus esclarecimentos, socorro-me do “Dicionário de Termos Literários” 2.ª edição de Massaud Moisés onde diz que a conotação vemo-la na prosa e na poesia, mas esta é, por natureza, conotativa. “Enquanto num texto poético cada palavra pode assumir mais de um sentido, num texto "prosístico" o vocábulo tende para a denotação e só adquire matiz conotativo quando se leva em conta o conjunto da obra onde se inscreve”

(1) “vereda” = atalho – aqui de uso literário, ou conotação


Atentemos agora neste soneto, onde é evidente a conotação:


SUAS MÃOS
(de Gonçalves Crespo)


As mãos dessa franzina criatura
São feitas de camélias cetinosas;
Ressumbra na suavíssima textura
O azul das ténues veias caprichosas.

Levemente compridas, graciosas,
Escurecem das teclas a brancura,
E desprezam as lindas preguiçosas
Os finos arabescos da costura.

Os dedos são de jaspe modelado;
E as unhas ... só podiam as paletas
De um chinês imitar-lhes o rosado.

Se alguém as beija em curvas etiquetas
Sente um aroma doce delicado
Como o aroma subtil das violetas.


Aqui, o signo linguístico complexo, as “Suas Mãos” como significante, não representa o significado simples da extremidade dos membros superiores; observa-se, sim, uma criação literária, imaginação do poeta, que fantasia uma auréola de encantos para as “Suas Mãos, - as mãos dela, da sua amada. É evidente a conotação”

Monday, September 18, 2006

REIIVAL - A POETISA


Da minha amiga Virgínia com o pseudónimo “Reival”, que, como eu, foi assídua colaboradora do jornal “ O Comércio da Póvoa”, apraz-me reeditar sua pequena poesia que me empolgou à"leitura", publicada no n.º 43 de 30/10/03

Com o título: HAVERÁ?!
Subtítulo : Tu, na marcha branca!

Haverá coisa mais bela de ver
Que nem o céu com mais cores
O mar com as suas ondas
Em ebulição...
O sol com seus ardores
A pálida luz da Lua
Onde uma estrela flutua
Em cintilação...
Um beiral com as suas pombas
Enamoradas...A leveza do despertar
Das madrugadas ...
Ou o campo florido de papoilas
Por entre os trigais
Em ondas de bonança ...
Não jamais, jamais,
Haverá coisa mais bela de ver
Do que o olhar de criança !

A minha leitura :

Comecemos pelo fim, pela metáfora chave de todo o texto que é um hino à pureza personificada nesse ser frágil que é a criança. Aqui, o puro é o belo e o significante, o vocábulo criança, induz o significado beleza que se exprime no olhar.
O texto é, globalmente, uma hipérbole e há o recurso predominante a sensações visuais , comparações em cadeia com elementos do céu, do mar e da terra, em que o termo olhar de criança determina o grau de superioridade. Ver o olhar de criança traduz a sensação de beleza superior às cores do céu, às ondas do mar , aos ardores do Sol, à luz da Lua, ao cintilar de uma estrela, às pombas enamoradas do beiral, à leveza do despertar das madrugadas, ao campo florido de papoilas por entre os trigais de bonança.
Como se vê, a poeta recorre a elementos do céu, do mar e da terra para, hiperbolicamente, exclamar: Não jamais, jamais haverá coisa mais bela de ver do que o olhar de uma criança !
Finalmente, quero dizer que a pequena poesia é repassada de uma emotividade intrínseca a que as rimas, postas com arte, prestam o seu contributo para a sensibilidade do leitor.
Q U A N T O S ? !

Quantos olhos magoados sem
/esp’rança
Duma réstia de luz
Caminham nesta vida, sem bonança,
Presos à sua Cruz?!
Almas dilaceradas sem que alguém
Pressinta a sua dor
Sem que, por caridade, então
/ninguém,
Seja cireneu por um só instante,
Um instante de amor !
A turba passa alucinada, uivante,
Ou somente indiferente...,
São como as ondas do mar
Serenas ou em turbilhão
Vêm e vão... vêm e vão...
Enquanto o só
Amargurado,
Falho de dó
Caminha desamparado
Por entre a gente

24/X/2004 Reival


Pela estima de minha amiga Virgínia e pelo interesse que entendo merecer a sua poesia
transcrevo para aqui o que publiquei em “O COMERCIO DA PÓVOA n.º44 de 11/11/04 :

(...) Com a ênfase que lhe é devida, honremo-la com o epíteto de poeta a esta senhora da arte escrita. Não poetisa, por simples concordância de género . Poeta é o título honorífico que a consagra. “Alma de poeta”é a expressão que muito bem cabe para aludir ao sentimento que as suas pequenas produções nos transmitem com tanta devoção. De longe, no tempo, venho eu a admirar o seu estro, já aqui o declarei, mas, compreender-se-á a minha fé na arte que me coube, por dever de ofício (fui professor de literatura) estudar e transmitir, a quem me competia sensibilizar para o seu valor cultural
Para mim próprio, já tenho afirmado, também neste lugar, que a literatura é a arte das artes, já que, pela palavra se pinta, se esculpe, se modela e se musica. E a fraude não cabe no seu espaço.
A verdadeira poesia é metáfora. A metáfora eleva e pluraliza o sentido da palavra e é neste rumo que vou tentar fazer a leitura da prenda que a Reival, generosamente nos oferece:

Olhos são o espelho da alma , logo, quantas almas sofrem nas trevas? Sem esperança que a dor acalme estão presas à sua cruz. Instrumento conotado com a alma e é símbolo do limite máximo do sofrimento ( Cristo morreu crucificado). Almas (diz agora) angustiadas pelo abandono, sem caridade, sem dó, do seu semelhante, alheado pelo egoísmo. Cireneu é a metáfora da ajuda. Simão o cireneu da Bíblia, por amor, ajudou Cristo a levar a Cruz ao Calvário. Mas, aqui não há um instante da manifestação do amor de alguém A turba, isto é, o mundo louco, uivante ( os lobos uivam) ou alheado da sua existência ondula, em fluxos e refluxos ( as ondas do mar vêm e vão...) em remoinho ou serenamente ( é a guerra ou a paz). O só ( aqui o sujeito é singular) evoca os sonetos de António Nobre para um sentido do maior abandono.
Sintetiza, nos últimos cinco versos, muito apropriadamente, o que um ser humano concreto ( já não são as almas por abstracção) padece na sua dor de total isolamento por entre a gente.

Conclusão : É muito difícil , senão impossível reescrever o poeta, porque ele não expressa ideias, mas antes exprime sentimento.