Friday, July 07, 2006

O MAR

Conto de Libânia Feiteira


O banco de madeira continua na cozinha, junto à janela. Nunca mais se sentou nele.
Não voltou a olhar o mar.
Fora da avó, depois da mãe, agora fazia anos que lhe pertencia.
Junto à janela, permitira-lhe zelar pelos filhos que brincavam à porta de casa enquanto fazia a renda, descascava as batatas ou o feijão, enquanto dava uns pontos na roupa usada.
Tivera a importância de um posto de vigia. Ali se sentara a fingir que não dava pelas horas, noites adentro, e as mãos sempre, sempre a trabalhar.
Ali se sentara quando os filhos eram pequenitos, para os amamentar. O António primeiro, mais tarde o Mário.

Olhou-se distraidamente no espelho.
O corpo conserva ainda uma certa frescura e ela sabe-o. Sente-o, quando um arrepio lhe percorre as pernas, os braços, os seios. Quando os apalpa por baixo do lençol, duros. Esse é o momento em que o vazio é maior, em que a solidão a oprime como mãos fortes, em volta do pescoço, a apertar.

Quando se casou ficou a viver aqui, na casa onde nasceu. Aqui mesmo, defronte do mar. É um bairro pobre, de pescadores. As casitas todas baixas, brancas, a porta a dar directamente para a rua de terra batida.
Aqui viveram os pais. Daqui partiram os dois irmãos a procurar vida melhor em terras distantes.
A casa foi a herança que lhe coube. É tudo o que lhe resta da família que foram. Herança carregada de recordações! Dos olhos da mãe inquietos, ansiosos. Dos olhos martirizados da mãe quando o mar lhe levou o companheiro, ali mesmo, à entrada da barra, quando regressava já a casa.
Tempos de miséria que quisera esquecer.

Por isso, em cada dia, em cada hora, rezara para que o seu homem largasse a faina do mar. Porquê o mar? Não tinha ele tido tantas possibilidades de arranjar trabalho em terra? Não lho suplicara ela, os olhos feitos de lágrimas, enquanto se amavam a cada reencontro?

Ela sabia que cada despedida podia ser a última.
Por isso, quando lhe vieram contar, o que recebeu foi a notícia mil vezes imaginada.
As mãos escorregaram-lhe do colo.
Os olhos pararam.
Não ouvia os filhos. Não lhes sentia as mãos solidárias afagando-lhe o rosto e os cabelos.

Nos dias que se seguiram sentiu-se a ser içada de um poço, lenta, dolorosamente.
E chegou ao cimo porque os braços dos filhos se fizeram a corda a que se segurou.
Os olhos, pisados, foram-se entreabrindo, devagar, que os feria a luz.

Passado um ano não pode ainda ouvir falar do mar. Não voltou a olhá-lo. Os olhos baixam-se instintivamente de cada vez que sai e só voltam a erguer-se quando as casas, ao fundo da rua, formam uma cortina de cimento.

O jornal, que o filho mais velho deixou sobre a mesa, traz hoje uma notícia sobre a tão prometida construção do porto que há-de impedir que o mar continue a ser a sepultura de tantos homens.
Nem chegou a ler.
Nada do que diga respeito ao mar lhe interessa! Não quer saber dele! Nunca mais!
Chega-lhe ouvir-lhe a voz rouca, ameaçadora, durante as longas noites de invernia. Chega-lhe ouvir, como hoje, a ronca a anunciar o nevoeiro. São sinais de morte que lhe tolhem os nervos, lhe encurtam as horas de descanso, lhe trazem a imagem das mulheres aos gritos na praia, desgrenhadas, as mãos crispadas numa prece inútil.

Deitou-se cansada. A fábrica mói-lhe os braços. As longas horas de pé engrossam-lhe as pernas.

Mas não chegou a repousar. Acordou a meio da noite, num sobressalto, com o barulho do mar.
O vento, feito com ele, a forçar-lhe a casa. A tentar abrir portas e janelas.

Saltou da cama.

O mar a uivar, desesperadamente, como nunca o ouvira antes.

Protegeu as janelas. Encostou a arca velha à porta. Os uivos a entrarem agudos, como lâminas afiadas, por todas as frestas. A estalarem-lhe a cabeça.

Impotente, saturada, sentou-se na cama. Cobriu os ombros com uma manta.

Ficou a ouvir.

A concentração a esculpir-lhe vincos fundos no rosto. A engolir-lhe os olhos. A convocar-lhe todos os sentidos.

E o tempo a passar.

E o mar aos uivos. A dilacerar o corpo na praia. A atirar-se contra as muralhas. A fazer das ondas as garras com que rasga o vestido negro da noite.

E a ronca aflita, maternal. Com a voz já rouca de tanto gritar o perigo. De tanto suplicar cautela.

Estavam ultrapassados os limites da resistência de que os nervos são capazes.

A amálgama dos muitos sentires de que se tece a loucura estampou-se-lhe no rosto.
Convenceu-a de ter sido ELA a causadora daquela fúria.
Meu Deus, como não vira logo!!! Claro! Não era outra coisa!!! Ousara desprezá-lo! Voltara-lhe as costas! Enlouquecera-o!!! Estavam vingados em si, o pai! O marido!! Todos os mortos que, desde criança, vira darem à praia! Todos os que foram engolidos e nunca mais apareceram! Todas as mulheres que ficaram sozinhas! Todos as crianças que ficaram sem pão!

O sorriso cresceu. Cresceu. Abriu-se numa gargalhada que se desdobrou em gargalhadas imensas, absurdas, que percorreram a casa, acordaram os filhos. O rosto fez-se uma máscara de nervos tensos. Arrepiados. Só esgares.

- Mãe! MÃE!

E ela, a gargalhar:
- Ouçam-no, filhos! Enlouqueceu! ENLOUQUECI-O!!!

- MÃE!

E ela a gritar:
- O MAR ENLOUQUECEU!

Conseguiram deitá-la. Desfalecida. A chorar e a rir. A murmurar coisas sem nexo.

Só muito mais tarde, quando o mar se acalmou, ela conseguiu finalmente serenar.

Adormeceram, ambos, exaustos pela violência do desafio.



A minha leitura :

Tentar parafrasear o conto seria grande estultícia. Apenas umas anotações para uma interpretação mais profunda, a tentar comungar da emoção que a escritora tão sabiamente nos transmite :

O motivo do conto é a vida da mulher poveira: filha, companheira e mãe de pescadores.
Emana de uma vivência da autora no espaço em que ela viveu, não fisicamente, mas espiritualmente pela sua descendência de gente do mar que lhe comunicou o sentir, os sobressaltos, a angústia permanente na batalha pelo pão arrancado ao elemento impetuoso que a autora, com uma admirável arte, tão bem animiza (... . " a fazer das ondas as garras com que rasga o vestido negro da noite") Sublime, também, a personificação da ronca, numa atitude humana, frontal à fúria demolidora do mar, : “e a ronca aflita, maternal. Com a voz rouca de tanto gritar o perigo. De tanto suplicar cautela”
Belas e sugestivas metáforas concorrem para a densidade emotiva da sua arte de contar : "Nos dias que se seguiram sentiu-se a ser içada de um poço , lenta,dolorosamente. E chegou ao cimo porque os braços dos filhos se fizeram a corda a que se segurou" . Só o amor dos filhos a podia fazer voltar à vida.

O valor da sua arte culmina com o clímax do sofrimento d’ “ELA” , a mártir, que a leva à loucura.

LIBÂNIA FEITEIRA

Fez o Curso Geral de Teatro e o Curso Superior de Educação pela Arte no Conservatório Nacional de Lisboa.
LIBÂNIA FEITEIIRA nasceu em 1950 na Póvoa de Varzim.É licenciada pela Universidade de Viena em Línguas e Literaturas Modernas (variante de Português / FrancêsViveu em Moçambique, na Alemanha, no Senegal, na Áustria e na Austrália.
Vive actualmente na Indonésia.
Libânia Feiteira tem colaborado com imagens de trabalhos seus sob o tema "Criatividade Artística" no Garatujando que conta, agora, também com a sua colaboração literária em forma de contos, sob a designação " Aqui entre nós" título de um livro a publicar
Entretanto o GARATUJANDO publicou já os seguintes contos de Libânia Feiteira:
A minha Princesa............................................1 Janeiro 06
Era o tempo.................................................26 Janeiro 06
Não te largo mais a mão..................................7 Fevereiro 06
Os olhos da alma..............................................17 Março 06
O Santo que lhe deu o nome ..................................15 Abril 06
O Mar ............................................................26 Junho06