Monday, June 25, 2007

Dr. Francisco Salgado

QUADRAS SANJOANINAS

Fiz um barco de papel
Para dar a volta ao mundo
Quis andar, meti-me nele
Acabei por ir ao fundo


Esse teu vestido aos folhos
Que trazias quinta-feira
Faz-me lembrar os teus olhos
Quando ris na brincadeira

Namorei uma só vez
E fiquei apaixonado
Comigo já vais em três
Vê lá bem se tens cuidado

Teus olhos, meu bem, teus olhos
Quando brilham de alegria
Parecem cravos aos molhos
Em noite de romaria

De há uns tempos para cá
És a silva dos caminhos
A amora doce está lá
O pior são os espinhos

Fizeste jura bem sei
De não quereres nada comigo
Mas os beijos que roubei
Hão-de ser o teu castigo

Vi-te no baile enlevada
Num torvelinho de dança
Ver-te assim entusiasmada
Dá-me gostos de vingança

A moça namoradeira
É tal e qual um melão
Maduro que bem que cheira
Só lhe falta o coração

A moça pelo S. João
Digo-te já não duvides
Faz lembrar um bom melão
Carregado de pevides


Fora eu o teu marido
E afinava da desgraça
Desse teu ar atrevido
Cumprimentando quem passa

Trago dentro do meu peito
Roidinho de ciúme
O meu coração desfeito
A chorar sem um queixume

Quis andar de bem contigo
Afinal tu não quiseste
Não sei se foi um castigo
Mas sei bem o que perdeste

A carta da despedida
Rasguei-a, deitei-a ao lume
Queres saber, depois de ardida
Ainda tinha o teu perfume

Pus-me a passar noite e dia
À porta do teu jardim
Quis saber se lá havia
Quem se lembrasse de mim

Antes ver-te na soleira
Sentada a dobar o linho
Do que ver-te na ribeira
Com a roupa em desalinho

Vou armar com alecrim
Um ramo para o teu noivado
Vale mais fazer assim
Do que andar amofinado

Por me ver abandonado
Como um craveiro sem sol
Vou cantar desesperado
Como canta o rouxinol


Francisco Salgado

VÁRIOS I

Sacrário

Um perfume a madressilva
Pela porta entreaberta
Um poema inacabado
No fundo do armário
A palavra desperta
A palavra deserta
O tempo e o lugar
A ferida descoberta
No vão de um relicário


Mater admirabilis

Não recordo uma carícia um afago
Apenas o intenso o profundo
Calor dos teus olhos que ainda trago
E quando te perdi
Perdi o mundo

´VÁRIOS II

Maresia

um perfume verde a baloiçar
barcos destruídos
o teu corpo percorrido
na brisa que meus olhos nau
fragam abandono com sabor de algas e coral

profundo nos teus olhos
de sereia
meu amor
este gosto do sal
que vem no vento

Baixa-mar

meu corcel de espuma
destroçado
onda
torrente
sôfregos tentáculos
em que me prendo
e abrigo
e aceito
o teu corpo adivinhado
a fúria desejada
o lodo
e a maresia dum
beijo
e dum soluço


Pôr de Sol

quero um pássaro de sol
a brincar
no teu regaço
e a rubra fantasia
com perfumes de cravo e de alfazema

as loucas pinceladas
com que traço
o apagar do dia
num poema

Francisco Salgado

VÁRIOS III

Passos na Areia

o pedaço
de sargaço
que arrasto
em cada passo
é o espelho
do que faço
e contrafaço
vai-se perdendo o espaço
seco e velho
e muito gasto



Natal

penumbra de olhos plasmados
na soturna agonia
de brinquedos impossíveis
a refulgir do sonho
indiferentes
às mãos nuas impotentes
vasculhando desesperos
nos bolsos esburacados

criança
salpicada de natal



Somos cinco irmãos

desiguais no tamanho
em tudo bem diferentes
cada um com o seu jeito e o seu mister
só a palma lhes traz a união
os cinco são como os dedos de uma mão
abertos com ternura a toda a gente
cerrados um só punho e um arreganho
difícil de vencer


Francisco Salgado

VÁRIOS IV




Ao meu grande amigo,
O meu mano mais velho,
Dimas Maio, como testemunho
De uma amizade imperecível
.



Mar da Póvoa

Quando vejo das vidraças
Este mar mesmo de fronte
Tomo o céu por horizonte
Tomo as nuvens por barcaças
E navego o dia inteiro
Ao sabor do desatino
Como qualquer marinheiro
Sem ter rumo nem destino
Mar da Póvoa, mar da Póvoa
Onde perco o meu olhar
Não quero ser timoneiro
Nem navegar num veleiro
Que anda perdido no mar
Quero ser como a gaivota
Sobre as ondas baloiçar
E se o peixe não se esgota
Ficar na praia a esperar.
Mar da Póvoa, mar da Póvoa
Que tenho na minha frente
Só quero ser marinheiro
Para chegar ao sol poente!




AVM/19/06/07

Francisco Salgado


DESMORONAMENTO

mãe venho dos fundos dos tempos
das cavernas trago em mim a sede
a miséria a fome e o desespero
escorre-me viscoso das teias poeirentas
um grito magoado de tortura
inquisições calúnias cadafalsos
a peste e as vinganças a destruição e a morte
mãe sou um homem enforcado no gáudio popular
archote aceso por ignotas crenças
carrasco e réu tirano e maltrapilho
proscrito para as galeras sem culpa nem ofensas
condenado inocente por apenas ter nascido

mãe sufoco no garrote que me abafa
a revolta feroz dos oprimidos
arrasto no meu ventre a escravatura
com marcas de grilhetas e chicote
submisso ao capricho dos tiranos
que riem com desdém e crueldade
e matam por matar sem piedade

mãe venho dos fundos dos tempos
das naus dos meus senhores
a náusea e a amargura
fizeram destas mãos
o sangue com que choro e me arrepelo
fizeram desta dor
o pão que me alimenta
fizeram da impotência
o vento que me despe e despenteia

mãe eu sou escravo sou servo da gleba
sou artesão soldado sou mouro sou judeu
construo catedrais e durmo nas sarjetas
os lábios carcomidos gretados e famintos
disputando aos cães os ossos do caminho

mãe venho do fundo dos tempos
fibra a fibra me desfaço furioso
na terra ressequida
onde a cada passo tropeço enraivecido
pela minha cobardia
mãe mas ainda creio na lonjura dos poentes
no canto dos pastores na volta dos rebanhos
liturgia do tempo que teima em não morrer

mãe…
FranciscoSalgado



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A síntese da minha leitura :

Poesia é metáfora


DESMORONAMENTO é a metáfora do mundo do homem actual.

É conjugada em metáforas do ego, do sentir do poeta, alma angustiada
que grita , em silêncio , pela mãe , origem do ser que teme a ruina total,
mas crê ainda no regresso aos tempos primitivos de sua memória
dimasmaio